‘Sou idosa e as pessoas não queriam me ouvir’, relata doutoranda de 70 anos
Exclusão, cancelamento e aprendizado marcam convívio entre gerações na universidade
O que move Sônia Maria Pereira, 70, a procurar novos cursos é a vontade de aprender e de estar com o outro. Foi graças a esse propulsor que ela concluiu três graduações, quatro especializações e o mestrado. Também é o que ela busca no doutorado que está em curso, mas a troca de experiências e a formação de vínculos já não ocorrem como antes.
“Eu sempre fui muito comunicativa e muito ‘pequeninha’, com cara de mais nova, então mesmo quando fiz a última graduação, aos 40 anos, a idade não foi um problema. Eu não senti essa diferença até chegar ao doutorado”, diz. No início do mês, estudantes de Bauru (SP) debocharam de uma colega de 44 anos e afirmaram que ela deveria estar aposentada.
Sônia conta que iniciou o doutorado na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), mas decidiu buscar outra instituição porque o horário das atividades coincidia com as aulas que ministrava. A mudança foi um choque.
“Eu tinha muita vontade de contar minha experiência, as transformações na educação nas últimas décadas, mas sou idosa e as pessoas não queriam me ouvir. Me vi excluída”, relata a professora.
Mesmo nos trabalhos, ela afirma que foi escolhida para fazer dupla com uma aluna que era ouvinte e não sabia se continuaria as disciplinas. “Houve preconceito do próprio professor”.
A segregação fez Sônia desistir do curso e readequar a agenda para voltar às aulas na Unifesp, e o retorno virou motivo de questionamento mesmo entre amigos. Uma colega mais nova, também professora, perguntou durante um café se permitiam idosos no doutorado e sentenciou que ninguém aceitaria orientá-la.
“É lógico que existe limitação, mas o preconceito é muito maior do que a limitação. Eu podia ter continuado, mas fui excluída durante todo o tempo que estive lá. E se fosse uma bolsa de estudos? E se eu dependesse dela? O preconceito tira o seu sonho, então você tem sempre que ter outro. Eu tinha outro, eu vou continuar”, diz a professora.
Jean Tudy dos Santos, 49, já pensou em desistir algumas vezes da graduação em psicologia, mas permanece porque deseja mostrar ao filho de 11 anos que não se deve abdicar dos planos diante das adversidades.
Nos anos 1990, quando fez o curso de direito, o delegado era um dos alunos mais populares da sala. Agora, afirma ser preterido pelos colegas por estigmas relacionados aos policiais e por expor seus valores pessoais.
“Tenho dificuldades para entrar em grupos de trabalho e não tenho mais idade para ficar correndo atrás, implorando”, comenta o estudante, que está no quarto ano do curso. De acordo com o último Censo do Ensino Superior, somente 29,6 mil pessoas entre 50 e 54 anos se formaram no Brasil em 2021, contra 461,4 mil entre 19 e 24 anos.
Outra diferença, diz Jean, é a abertura para debates. No passado, não havia tanta liberdade para discussão. Por outro lado, não existia o medo de desagradar e ser cancelado. “Eu acabo estimulando outras pessoas a pensar de uma maneira diferente e mudei boa parte do meu posicionamento. Se você não tiver flexibilidade, é difícil e muitos não falam com medo do cancelamento”.
Carolina Santos de Oliveira, 22, relata que esse receio é observado mesmo quando o assunto é o comportamento da turma. Na última semana, quando o barulho da sala atrapalhava a aula, coube a uma estudante mais velha, na faixa dos 40 anos, tentar colocar ordem. “Ela foi a única que se propôs a pedir para todos ficarem em silêncio. Eu não teria coragem, poderiam pegar rixa comigo”.
Aos 19 anos, Caroline Taborda quer falar, porém nem sempre é levada a sério. Caçula da turma de pedagogia, ela ouve com frequência que é muito nova e não tem propriedade para abordar determinados assuntos. Já Kauany Evellin de Faria, que tem 26 anos, observa que os colegas mais novos esperam dela maior seriedade e responsabilidade.
As três jovens não têm colegas mais velhos em seu círculo de amizade, mas veem benefícios na presença deles em sala de aula. “Podemos ter essa troca, o que eles viveram lá atrás e o que estamos vivendo hoje. Eu ensino muito da atualidade e, como eles trazem a visão do que aconteceu lá atrás, eu aprendo com isso”, afirma Oliveira.
“Tem um senhor na minha sala que me disse: ‘Eu larguei tudo e estou vivendo o meu sonho’. Eu estou realizando o meu com 26 e ele com 46. É uma discrepância de 20 anos, mas é o nosso sonho, então a gente se encaixa em algum momento da vida”, observa Faria.
A possibilidade de conexão, com os mais novos aprendendo a se posicionar e os mais velhos flexibilizando suas visões de mundo, é o que há de mais rico no convívio intergeracional no ensino superior, defende Cristiane Marcelino, coordenadora do curso de pedagogia da Universidade São Judas Tadeu, onde as garotas e Tudy estudam.
“No mercado de trabalho, eles vão lidar com essas diferenças”, enfatiza.
Outro benefício do convívio entre estudantes de diferentes idades é a possibilidade de aproximar experiências distintas. “Os mais velhos mergulham em um universo ao qual às vezes só têm acesso pelos filhos. Além disso, os jovens são muito apaixonados, engajados. Com os tombos dos anos, vamos perdendo um pouco essa paixão e acho que pela troca eles aprendem um pouco a retomar o brilho nos olhos”, pondera Celina Bartalotti, coordenadora geral de graduação do Centro Universitário São Camilo.
Aluno de enfermagem, Luca Marins de Oliveira, 18, aponta ainda outro fator de aprendizado com os mais velhos: foco. Os colegas acima de 30 anos são mais centrados, diz o rapaz, que foi “adotado” como filho pelas alunas mais maduras, outro aspecto recorrente no relacionamento entre as gerações.
Regina Célia Ribeiro, 43, é uma das mãezonas no curso de nutrição. Ela se divide entre os treinos diários, a graduação e o trabalho como podóloga e dá bronca em qualquer um que ouse dizer não ter tempo para cuidar de si —ou insinuar que para ela já passou da hora.
“Vi o caso daquela estudante em Bauru e fiquei horrorizada. Nunca tinha pensado nessa questão da idade. Quando me matriculei, eu sabia que ia ter um monte de jovens e amei”, confessa. “Eu me orgulho das rugas, desses cabelinhos brancos. Não estou nem aí”.
Para ela, há espaço para todas as idades e as mulheres podem ocupar o lugar que quiserem, inclusive a pista de um baile de formatura. “Com um vestido verde todo acinturado, maravilhoso!”, adianta.
Por: Stefhanie Piovezan
Data: 28/03/2023
Jonal Folha de São Paulo
Site: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2023/03/sou-idosa-e-as-pessoas-nao-queriam-me-ouvir-relata-doutoranda-de-70-anos.shtml
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